The thought of a superior European culture is a blafant insult to the majesty of nature.
Raymond Williams
Após a reflexão sobre as várias definições de cultura apresentadas por Raymond Williams no seu ensaio, Keywords. A Vocabulary of Culture and Society (1933), podemos considerar que a cultura é um fenómeno vulgar na sua orientação quotidiana. Todos partilhamos processos e padrões culturais comuns; no entanto, desenvolvemos simultaneamente a nossa cultura individual, própria de cada um. Neste sentido, para alguém se tornar parte de uma cultura terá que construir uma identidade. A questão da identidade torna-se relevante para os estudos culturais, uma vez que permite a ordenação e a estabilidade do sujeito. Assim, saber onde é o nosso lugar passa a ser um dos factores primordiais no que diz respeito à construção da identidade no mundo moderno.
Em 1619, deu-se o início da escravatura nos Estados Unidos da América, na colónia de Virgínia, que, durante séculos, alterou as vidas dos negros transportados do continente africano numa longa e aterrorizante travessia do Oceano Atlântico, denominada por “Middle Passage”. Considera-se hoje tal miséria e sofrimento humano um verdadeiro holocausto, caracterizado pela forma brutal como os homens que se conheciam como civilizados albergaram estas raças consideradas primitivas. Principalmente após a abolição da escravatura (1866), estas comunidades tiveram que trabalhar na reconstrução da sua identidade, roubada pelos exploradores em nome do cristianismo. Um dos passos mais importantes para essa reconstrução seria então, criar orgulho na sua comunidade, a comunidade Afro-Americana. Tendo como suporte um texto de Alain Locke escrito em 1925 e entitulado, The New Negro, tal como outras referências retiradas de narrativas de escravos, desenvolvo de seguida uma leitura da expressão cultural dos negros nos Estados Unidos pós-escravatura.
As “slave narratives” são textos que narram acontecimentos, na maior parte das vezes, na primeira pessoa e nas quais narra factos reais consoante as suas memórias e experiências. Traduzindo a expressão para as “narrativas da escravatura” pode ser conveniente, embora não se consiga transmitir a essência do molde original. Estas narrativas representam o culminar de uma tradição literária desde o século XVII e têm, hoje, um papel significativo na história cultural afro-americana. São, nesta perspectiva, valorizadas como uma forma de arte, pela qual a comunidade em questão se reafirma dentro de uma sociedade cosmopolita, sociedade essa que lhes foi imposta. Alain Leroy Locke nasceu em 1885, num seio familiar virado objectivamente para a educação, não sendo então de estranhar a surpreendente intelectualidade que provou ter, no seu tempo. Formado e profissionalizado pela Harvard University, Locke foca o seu principal interesse no “New Negro Movement”, associação oficialmente fundada em 1925. Os ideais deste movimento eram expressar a nova imagem dos negros, liberta das identidades pré-construídas, sobretudo durante a escravatura. A história dos antepassados é direccionada artisticamente, de forma a introduzir a intelectualidade na comunidade. No texto que deu origem ao movimento, nota-se o forte apelo à autodeterminação como recurso para o negro se libertar dos estereótipos daquele “old negro” que se contrapõe à sua nova imagem como pessoa emancipada através da consciência pessoal. Esta apresenta-se como uma forma de construir uma identidade cultural digna de pertencer a uma sociedade.
O texto narrativo de Locke aponta para a forma de estar e de pensar dos seus antepassados, consoante as circunstâncias dos seus opressores. A sensação de inferioridade instalou-se no espírito do “old negro”, e este, moralmente manteve-se contido no seu lugar. Formalmente, é esta forma de estar que o autor pretende abordar, apresentando uma nova visão, mais consistente da comunidade negra, e, para isso, o mais importante é aumentar o auto-estima dos membros desta comunidade, através do auto-respeito e da auto-suficiência de cada um. Tendo em conta que as sociedades estão em constante transformação, o que ajuda a distinguir as sociedades tradicionais das modernas, essa mudança de atitude por parte dos afro-africanos é perceptível. Quero eu dizer com isto que Locke projecta no texto uma perspectiva antecipada dos tempos modernos que vieram quebrar com os modelos impostos pela tradição, desfragmentando o mundo e desenvolvendo desta forma uma pluralidade de centros de poder. O “new negro”, segundo Locke, determina-se pela capacidade de se valorizar como raça através das suas formas de expressão social. Como exemplo, o autor aponta para a vida que se vive no Harlem, em Manhattan, onde se reúnem pessoas ligadas a variadas artes, tais como a música e a literatura, assente numa base sólida para o carácter intelectual potenciado pelos negros. Aqui, encontra-se a maior comunidade afro-americana e é por isso o local onde se juntam os maiores elementos que os caracterizam, estimulando a ideia de um negro integrado numa sociedade democrática. As manifestações culturais da comunidade negra vão permitir a constituição de uma individualidade reconhecível e integrante nas culturas predominantes.
Na perspectiva de que as tradicionais identidades estabelecidas no mundo social durante tanto tempo estão em declínio, surgem as novas identidades e a fragmentação do indivíduo moderno, como se pode verificar na identificação das diferentes raças. Perante os três conceitos de identidade que, ao longo da história da civilização, emergem, e que, segundo Stuart Hall são: o sujeito Iluminado, o sujeito sociológico e o sujeito do pós-modernismo, entendendo com isto que o homem não é o centro do Universo, mas sim um fenómeno em interacção com a sociedade, abrindo caminho à entidade que pretendo aqui salientar, o sujeito pós-modernista. Caracteriza-se por não possuir uma identidade fixa nem permanente, pois a identidade torna-se neste sentido num “moveable feast”. Isto é, algo histórico, pelo que o sujeito pode assumir diferentes identidades, por vezes até contraditórias em momentos diferentes. Todo este processo de mudança, reflectida na descontinuidade, fragmentação, ruptura e/ou deslocalização das identidades, chama-se hoje “globalização”. Surge com isto, a relação dos conceitos identidade e diferença, os quais, e prosseguindo o tema central, marcam a forma de pensar dos afro-americanos.
O texto de Alain Locke torna-se assim relevante nos estudos culturais, pois ele antecipa as ideologias de uma nova forma de individualidade, uma nova concepção do sujeito individual e de identidade que se reflecte hoje nos tempos modernos. A forma como a comunidade negra se identifica, dando respeitável valor ao seu passado, marca a sua diferença em relação com as outras culturas. A sua cultura interage e requalifica-se deste modo dentro das culturas massificadas. Tal é o objectivo que Locke pretende alcançar na exposição que faz em, The New Negro. Os afro-americanos devem interiorizar a diferença e construir a sua identidade paralelamente com a cultura americana que está inquestionavelmente assente na hibridez. Salienta-se desta maneira a vulgaridade da cultura porque cada sociedade tem a sua grandiosidade com desígnos muito particulares, o que se verifica na raça negra. A construção de uma sociedade é expressa através das suas instituições, nas suas artes e no ensino. À medida que a sociedade cresce, as mentes individuais são feitas e re-feitas mediante as culturas de massas. A comunidade afro-americana deve, assim, destruir a imagem de um povo estereotipado, sem convicções e subdesenvolvido, através das suas manifestações intelectuais e culturais. Devem comprovar e fortalecer a sua educação e mostrar capacidade de serem pessoas dignas e respeitáveis na sociedade.
O projecto de Locke em relação à construção da identidade da sua comunidade, ajuda-nos a perceber os diversos sentidos que o conceito de cultura aparenta ter mediante a sua aplicação em determinado ramo do conhecimento humano. Assim, dentro do contexto das Ciências Sociais, cultura é um aspecto da vida social, que se relaciona com a produção do saber e das artes, dos costumes, etc., perpetuada pela transmissão de uma geração às seguintes, sociologicamente, tudo o que é aprendido e partilhado pelos indivíduos de um determinado grupo e que confere uma identidade dentro do seu grupo de pertença. Este raciocínio leva-nos a pensar filosoficamente que a cultura é o conjunto de manifestações humanas que contrastam com natureza ou comportamento natural, ou um conjunto de respostas para melhor satisfazer as necessidades e os desejos humanos. Cultura é informação, na medida como se rege sob conhecimentos práticos e teóricos apreendidos e transmitidos aos contemporâneos. Eis o resultado dos modos como diversos grupos humanos foram resolvendo os seus problemas ao longo da história. O homem não só recebe a cultura dos seus antepassados, como cria, ele mesmo, elementos que a renovam, é um factor de humanização.